Matou a esposa e foi à igreja

     Era uma nebulosa e preguiçosa tarde de domingo. As nuvens escuras davam um tom melancólico ao dia que começara a cair e dar lugar à noite. Na penumbra daquela casa, Jorge segurava a colher, aguardando a esposa servir-lhe mais um pouco de mingau de aveia. Sua impaciência para aguardar aqueles dois minutos parecia um século e esbravejava:
     - Vai logo com isso, sua lerda... A esposa enxugava as mãos no avental, pois estava terminando de lavar a louça, e foi tirar de cima do fogão mais uma porção de mingau para servir ao marido.
     - Essa merda está gelada, sua estúpida. Pago tudo nessa casa e é isso que recebo: uma porra de mingau gelado?!
     O marido joga o prato no chão, esparramando a papa branca por toda a cozinha e sai.
     Nessa hora Rosa quase pensou em dizer algo àquele energúmeno asqueroso, mas calara-se mais uma vez. Lembrou-se do filho que Jorge cuidara como se fosse dele quando a conheceu grávida e largada na vida.
     Jorge nunca fora um bom sujeito em casa. Agredia a esposa quase todos os dias. Acho que as humilhações com palavras doíam mais do que as pancadas que dava e marcava todo o corpo de Rosa. Na rua, Jorge era conhecido como o amigo de todos. Era um sujeito bem quisto e irmão de igreja. Os fiéis da igreja iam visitá-lo frequentemente e até pedir conselhos. A mulher ficava em um canto calada, tentando entender como que um homem que a tratava tão mal poderia dar dicas de como se viver bem às outras pessoas. E engolia essa dúvida também com tantas outras coisas que vivera. Enquanto o marido falava aos fiéis, Rosa percebia que Jorge jamais demonstrara qualquer afeição ou sentimento, o olhar dele era fixo e observador. Seu semblante mal se modificava por qualquer assunto que seus ouvidos ouvissem dos amigos da igreja, era atento e preciso. Rosa até lembrou-se de um episódio de quando mataram o cachorro do casal: o marido pegou o cão morto, colocou-o em um saco de lixo e disse: uma despesa a menos...
     E Rosa nunca indagou o marido por tudo que observava dele. Era melhor se calar... Ela não tinha para onde ir. Ela era de uma pequena família migrante, seus pais morreram, seu único irmão era alcoólatra e não sobrava mais ninguém. O filho que tivera estava estudando em outra cidade e era o marido que bancava tudo. Jorge bancava o filho que não era dele. O filho era a razão de viver daquela pobre mulher.
     Mal podia imaginar a mulher que Jorge era estéril. Jamais poderia dar um filho à esposa. A gravidez de Rosa antes de conhecer o marido era até uma forma de amenizar a dor de nunca poder se ter um filho de sangue, por isso Jorge sempre tratara muito bem o filho que adotara, mas nunca deixou a mulher comentar que o filho não era dele. Nem o rapaz sabia que o homem que chamava de pai era seu padrasto. Jorge orgulhava-se ao falar do filho:
     - Meu filho será um doutor! Passou em uma universidade pública! Esse menino vale ouro...
     Rosa era do lar. O marido nunca a deixou a se atrever a ter um emprego fora. Jorge era contador e fiel a Deus, como ele mesmo dizia. Fidelidade? Pensava assim porque talvez nunca ouvia o que era dito na igreja. A cabeça dele sempre estava ligada a qualquer outro assunto enquanto a palavra era dita nos templos em que frequentava. Nem mesmo ele sabia por que tinha uma religião. Achava interessante estar no meio das pessoas. Elas o vinham procurar e pedir conselhos e seu ego inflava... Sentia-se soberano.
     Certa vez, Rosa resolveu ir comprar um vestido novo sem a permissão do marido e quando ele chegou do serviço e viu a mulher toda feliz com sua nova aquisição, começou a esbravejar. A raiva de Jorge não era por que a mulher havia gasto o dinheiro, mas por vê-la feliz. Quando os dentes da mulher se mostravam, Jorge se inquietava. Era uma afronta vê-la sorrindo. O homem não hesitou: pegou o vestido verde da mão de Rosa, rasgou-o e trancou a esposa por dois dias no quarto do filho que morava fora. A mulher passou fome e sede nesse período e só a liberou porque havia acabado a comida congelada e não queria sair para comer fora.
     - Sai logo, coisa medonha. Estou com fome e não tem nada feito.
     Rosa saiu rapidamente, não para se sentir livre, se é que ela sabia o que era isso, mas para limpar as necessidades feitas no chão do quarto no período em que ficou trancada. Enquanto limpava, as lágrimas se misturavam ao suor. Sentiu saudade do filho, de sua mãe. Sentiu vontade de ser criança, sentiu um vazio absoluto depois. Mas limpou o rosto apressadamente para poder se por ao fogão, pois o marido gritava seu nome da cozinha...
     Nesse domingo nublado, Rosa acordara diferente. Ficou vários minutos em frente ao espelho enquanto o marido tomava banho. Penteava os cabelos sem pressa e encarando a mulher que esquecera que era. Era ainda uma bela mulher de meia idade, de cabelo médios e negros, olhos esverdeados. Sua aparência a agradava, tocou sua boca, seus olhos; ousou até a passar um batom que sempre escondia na gaveta das meias, apalpou seus seios e percebeu que a imagem refletida naquele espelho era muito além daquilo que o marido dizia dela. Rosa se sentiu bonita e um sorriso se estampara em seu rosto. Foi nessa hora que a chuva começou.
     Raios e trovões surgiam e os ruídos desses não deixaram Rosa perceber que a porta do banheiro se abria e o marido acabara seu banho. A mulher estava surpresa pelo o que via no espelho e se sentiu, por poucos minutos, muito bem e sorria, sorria mais. Até que Jorge surgiu na porta do quarto. Nessa hora a mulher começara a gargalhar. E cada trovão que caía ela achava mais graça. A chuva aumentava ainda mais... Nem a presença de Jorge fez a mulher calar seus risos.
     Quando Rosa ergueu a cabeça para Jorge, coisa que não fazia, viu que ele estava careca e barrigudo e comparou os traços do marido com a bela imagem dela refletida no espelhou e riu... O marido pediu para aquela cadela calar-se, mas ela continuava a rir. Os trovões gritavam juntamente com Jorge que parecia enlouquecido com a felicidade da esposa. Ela continuava a rir. Estava vestida com uma camisola branca e de batom vermelho na boca.
     Seria mais um entardecer triste de domingo para Rosa, mas ela estava rindo sem parar. Jorge abriu uma das gavetas do guarda-roupa, tirou uma tesoura e apunhalou a mulher por dezessete vezes. Rosa deu seu último suspiro por volta das seis da tarde. Seu momento derradeiro fora de liberdade e risos, parecia nem sentir os golpes fatais e ficou estendida no chão do quarto.
     A tempestade terminara e Jorge percebeu que estava atrasado para ir à igreja. Lavou as mãos sujas de sangue, vestiu uma boa roupa reclamando, pois estava mal passada e criticou a mulher que estava estendida e morta no chão; empurrou-a com os pés, retirou o sangue espalhado com o lençol que tirou da cama, e com esse mesmo lençol, envolveu a esposa, escondendo o corpo num canto do quarto, esperando, mais tarde, pensar em como se livrar daquele estorvo.
      O homem, depois de olhar mais uma vez o relógio, ajeitou a camisa, mudou o semblante como se nada tivesse ocorrido e saiu às pressas para o templo...



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