Pequena narrativa da vida real
Pôs as vestes franciscanas, subiu o morro e morreu por ali mesmo. Era o seu décimo nono aniversário. Seu corpo fora encontrado duas semanas depois, em meio aos escombros.
Nunca conhecera uma mulher, nem as delícias carnais. Seu lema, desde criança, era seguir o que sua mãe e a avó sonhavam: vê-lo sacerdote. Nunca entrara em um seminário, isso era coisa para gente estudada, ele mal sabia ler um cardápio de restaurante... O livro sagrado, ele tentava desvendar, mas de tão difícil a leitura, preferia ficar repetindo as ave-marias do rosário que três vezes por dia rezava. Era mais fácil, e o melhor: estava tudo decoradinho, até cochilava às vezes, mas acordava, lavava o rosto e se punha novamente a segurar as pedrinhas, voltando às repetições. Pedia para as pessoas, principalmente as da vizinhança e sua família, para que tivessem paz e melhores condições para sobreviverem.
Na igreja do morro, aos dez anos, fez sua primeira comunhão. Para a família, a comemoração era como se fosse uma colação de grau, com direito a uma festa que teve até refrigerante, bebida essa que só via em datas muito especiais. O pão sagrado, provado pela primeira vez, era a comida dos santos, dizia a avó que era benzedeira de bucho virado.
Mal conhecera o pai, o desgraçado sumiu depois de quase ter matado a mãe de tanto bater com uma garrafa de água ardente. Cresceu com a mãe, quatro irmãos e a avó. Vitório era o segundo filho.
O primeiro irmão morreu fazia oito anos, era para ter vinte e um se estivesse vivo, é isso que a mãe vivia repetindo. Levou um tiro vindo de um carro da polícia que vasculhava o morro e ninguém viu quem foi o policial que o matou e ninguém quis saber também. O menino tinha treze anos e fazia algumas entregas especiais para os donos do morro. Era assim que chamavam os traficantes. As dos meio eram meninas: uma de doze e a outra de quatorze anos, as únicas que frequentavam a escola, uma delas, a de quatorze anos, fazia aulas de balé em um projeto social, voltado às comunidades. Andava sempre com as sapatilhas gastas, ganhadas de um padrinho de setenta anos que vivia aliciando a menina. A menina de doze anos era fraca da ideia, falava pouco, era vista sempre sozinha com sua boneca de palha de milho, diziam que ela gostava de ficar sozinha, pois nunca ouviram falar de autismo... Fazia pela terceira vez a quarta série.
Vitório, de dezenove, era, portanto, a esperança da família e, desde criança, carregava o fardo de ter que ser o filho que daria certo. O menino era até meio corcunda, acho que era pela cruz desta responsabilidade que carregava nas costas: de ser o filho ajuizado e correto, que, mesmo com todas as circunstâncias do meio em que vivia, continuava firme em sua decisão: seguir os passos de São Francisco, pois, para o seminário, ele não iria mesmo, já que largara os estudos na terceira série do ensino fundamental. O rapaz cuidava de pombas doentes, levava cães e gatos para a casa afim de cuidar, enfim, fazia o que o padre daquele local contou a ele um pouco sobre o que São Francisco fizera quando vivo. E foi esse mesmo padre, que na véspera dos dezenove anos de Vitório, presenteou-lhe com a túnica marrom com capuz e com uma sandália. Talvez tenha sido o presente mais importante para ele: seus olhos encheram-se de lágrimas. Prometera ao padre, que no dia seguinte, no dia de seu aniversário, portanto, subiria no alto do morro, onde havia uma pedra, e pregaria aos moradores sobre fazer o bem às pessoas e aos animais. O padre até pensou alertá-lo para ter cuidado com o que falar, mas imaginou que o rapaz não faria o que falava e resolveu aquietar-se, despediu-se dele e foi para a casa paroquial que ficava sete ruas abaixo da casa de Vitório, em uma rua que de nada parecia com a favela, apesar de bem próxima: até asfalto, esgoto e iluminação pública havia...
Depois de subir o morro, esgotado de calor, em cima da pedra, Vitório começou a falar em voz alta. Falava, falava, falava... Não puderam ouvir, porque muitos falavam também. Estava havendo uma briga no bar defronte à pedra em que o rapaz subira. A cachorrinha da vizinha de cima do bar havia criado seis e um morreu,. Algumas crianças, brincando de velório, velavam o pobre animalzinho morto. Numa casa próxima, comemoravam a volta do filho que conseguira sair da prisão. Em uma outra casa, o filho da mulher gorda e que tem bigode, conseguiu comprar um rádio de tocar CD por dez reais de um "nóia" e colocava um som bem alto. Na outra casa, a filha da mulher que vende doce, chegou desesperada porque foi demitida da padaria do português... E Vitório continuava a falar, e como seu vocabulário era curto, preferiu fazer o que mais sabia: rezar o rosário. Começou a repetir as ave-marias de olhos fechados e nem observou que o céu se fechava.
Nuvens negras se formavam no céu, começou a ventar. Depois mais forte. Na medida que o vento soprava, o rapaz aumentava o volume da voz e se punha a rezar, já estava quase perdendo a fala e o vento esbravejava ainda mais. Foi quando o vendaval, destruidor e valente, começou a trazer consigo partes dos casebres que visitara; jogou o rapaz da pedra em que ele estava, levando para cima dele os restos das casas destruídas. Levando da família de Vitório a única esperança de um futuro melhor: o menino que deveria ser santo, mas morreu. E ninguém ouviu sua voz. E ninguém de sua família pôde dar-lhe um túmulo decente.
Vitório foi, como a maioria da população daquele lugarejo, enterrado ao lado de cães, gatos e outros animais, em uma cova rasa. Ele fora sepultado com as mesmas vestimentas franciscanas que vestia. Sua avó, a benzedeira, agora pede ao neto que atenda seus pedidos. O rapaz, talvez, nunca será canonizado pelos grandes, mas pela sua família e pelas circunstâncias em que vivia, é, de certo modo, um santo. Ou talvez uma pessoa comum que tenta ser diferente dos demais, e que, como todos os nadadores que tentam nadar contra a correnteza, acaba perdendo as forças e morrendo afogado...